batismo teatral


O diretor espanhol Carlos Laredo e a atriz brasiliense Clarice Cardell preparam a primeira excursão brasileira de montagens concebidas para bebês de até 3 anos
Sozinhos, os bebês são postos um ao lado do outro. Não há adulto por perto. Com até 3 anos de vida, eles preparam-se para espécie de batismo teatral. Pela primeira vez, ficam diante do palco, onde duas atrizes tiram sons de objetos, gesticulam e mexem com elementos da natureza, a exemplo da água e da terra. Os olhos dos pequeninos dilatam-se de curiosidade. Outros, inundam-se de lágrimas. Há o choro inicial, comparado à resistência infantil em se entregar ao sono. Segundo a segundo, o que se observa é a concentração absoluta, pouco testemunhada numa experiência cênica. Ninguém sabe ao certo o que se passa dentro daquelas cabecinhas, mas a sensação expressa em cada face é de descoberta, de prazer.

É assim o teatro para bebês, gênero que se consolida, sobretudo na Europa, com festivais temáticos que reúnem montagens escritas e encenadas para platéias de até 3 anos. Duas dessas produções, Pupila d’água e Geometria dos sonhos, da companhia La Casa Incierta (Espanha), preparam-se para viajar por três capitais brasileiras. Brasília é uma delas. De 31 de agosto a 5 de setembro, serão sete sessões no Teatro Plínio Marcos, para 40 bebês e respectivos acompanhantes. As peças são atrações do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro. Antes, as produções passam pelo Rio (4 e 5 de agosto, no Teatro do Jockey) e São Paulo (10 a 19, no Sesc Ipiranga).

– O teatro para bebês é como um acrobata que se arrisca às alturas sem a rede de proteção embaixo, observa o dramaturgo e diretor espanhol Carlos Laredo.

– Estamos efetivamente na corda bamba. Não há regras. É um universo aberto à pesquisa, ao descobrimento total, completa a atriz brasiliense Clarice Cardell, que mora em Madri há 10 anos.

Casados, Carlos e Clarice estão em Brasília. Vieram com os dois filhos, Gabriela, 5 anos, e Andres, 3. Enquanto matam a saudade da família e da cidade, Clarice acerta detalhes da primeira temporada de teatro para bebês no Brasil. Na Espanha, ela e Carlos coordenam a mostra Rompiendo el Cascarón (“quebrando a casca”), que dura meses em atividade. O diretor descobriu o gênero quando era curador do festival francês Teatralia, dedicado à primeira infância.

– Na França, são 20 anos de teatro para bebês. Há uma tradição tanto do ponto de vista do público e dos artistas quanto de quem programa os festivais, observa Carlos.

La Casa Incierta viajou por diversos países da Europa, como França, Itália, Portugal, Bélgica e Rússia. Só com a Pupila d’água, a companhia fez mais de 700 apresentações. O espetáculo, aliás, tem em cena outra brasiliense radicada na Espanha, a bailarina, atriz e cantora Fernanda Cabral.

– Nunca uma apresentação é igual à outra. Os bebês estão ali o tempo inteiro. É olho no olho, fico profundamente emocionada. Não há como se mecanizar, mesmo com 700 apresentações. É surpreendente a capacidade de espectadores natos que eles possuem, destaca Clarice.

A atriz lembra de apresentações fantásticas, a exemplo da que ocorreu num bairro cigano de Madri, onde bebês de um ano e meio aplaudiam a performance.

– É um local parecido com os morros cariocas, de violência, pobreza e realidade dura, onde não se acreditava muito na recepção dessa arte, lembra Carlos.

Na carreira da montagem, há uma única apresentação em que tudo deu errado. Era uma cidade do interior da Espanha, numa escola na qual as crianças não tinham experiência de sair da sala de aula. Quando Clarice e Carlos chegaram, os professores estavam apreensivos; e os bebês, aos berros. O espetáculo aconteceu assim, sob choro.

Os adultos precisam acreditar na capacidade do bebê. O choro inicial é normal. Só precisa tirar o bebê do lugar quando realmente não quiser ficar. Às vezes, ele não dormiu bem, teve dor de barriga, não quer permanecer ali.

Carlos e Clarice não têm manual de conduta para o intérprete de teatro para bebês. Eles, no entanto, sabem quem não possui condições de enfrentar esse espectador.

– Não dá para mentir muito, exemplifica Clarice.

– É preciso estar ali de corpo e alma, completa Carlos.

Para quem consegue guerrear com os olhares curiosos dos bebês, a sensação é de estar diante da melhor platéia, a que se alimenta da curiosidade.

– A que não tem dificuldade em descobrir, a que é íntima da escuta, que deixa os intérpretes arrepiados na pele. Há pesquisas sérias na neurociência que mostram que o cérebro do bebê está próximo da reação de um músico profissional, do ponto de vista da percepção da melodia, dos tons, da capacidade de memorização. Eles têm a finura dos experimentadores de vinhos, que diferenciam uma uva da outra pelo paladar, a poética de cada sabor, compara Carlos.

O diretor aponta que os bebês são espectadores com potência para a concentração. Não possuem problemas com a compreensão. Para eles, a piada não precisa ser explicada.

A criança está inserida na poética. Há uma cena de noite no espetáculo na qual as pessoas achavam que os bebês poderiam chorar. Boa parte ri, conta Carlos.

É com esse pensamento que ele cria os espetáculos para bebês. É o que chama de geodramaturgia, formada de camadas. As primeiras pertencem ao desconhecido, à origem, à evolução da humanidade, à absorção dos mitos, à aprendizagem da linguagem.

– Eles estão muito conectados à experiência do nascimento, que pode ser muito bem dramatizada pelo teatro, diz Carlos.

Os dois espetáculos da companhia refletem esses sentimentos primitivos. Nenhuma das montagens tem a ver com esse teatro infantilóide. Geometria dos sonhos, considerado o mais arriscado, mostra uma pedra que deseja ser nuvem para voar, que deseja ser nuvem para chorar, que deseja ser um bebê. Parece complicado, mas, no DVD da peça, os bebês olham e compreendem tudo.

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